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Quarenta e duas milhas e meia

Quando o Balila Anunciação me convidou para escrever um texto explicativo sobre como fazer uma manobra acrobática, ele pediu para eu falar do parafuso. Eu queria falar do Hammerhead, na verdade, e aqui está. De qualquer forma, eu fiquei receoso, confesso. Imaginem vocês, em um texto, explicar como se executa uma manobra acrobática. Com certeza a pessoa que vai ler precisa de uma imaginação do nível Julio Verne para entender. Afinal, a pessoa tem que se imaginar dentro do avião e acompanhar o texto, pensando nas reações dele e do avião. Tudo isso enquanto lê. Isso não é para qualquer um. E pior: por mais explicado que seja, a pessoa pode achar que é fazer acrobacias é um negócio bastante difícil.

Mas eu vou tentar, vem comigo. Vamos começar com as forças que atuam sobre um avião, elas são diversas: a primeira é o fator P, a segunda é a precessão giroscópica da hélice, a terceira é o espiralamento do ar, e a quarta é o torque do motor. Vai rolar tudo isso aí numa hammerhead, e para cada uma você tem que agir de um jeito, em cada um dos comandos. E eu sei que agora você, lendo esse texto, tem certeza que será uma explicação extremamente chata e cheia de pano preto. Vou tentar fazer que não seja, juro.

É bacana você conhecer esses itens aerodinâmicos todos, mas para isso você irá no Google. É como curiosidade geral para você contar nos botecos, porque ninguém te ensinou essas coisas todas na sua matéria de aerodinâmica do curso de piloto privado ou comercial. E apesar de todas essas forças agirem nesta manobra, não quero que você saia para fazer um hammerhead todo programado. Se você fizer isso, sua a hammer vai ficar tão ruim como a de dezenas de pessoas que já vi subirem programadinhos para compensar força por força.

Eu explico: por causa do fator P você, na cabrada da linha horizontal para a vertical, você vai ter que calçar um pouquinho o pedal direito, depois lá em cima, na pivotada, terá que picar um pouquinho por causa da precessão. Como estou falando de coisas que são “um pouquinho”, você não precisa sair pensando nisso, você tem que agir aerodinamicamente para resolver essas paradas. E agir como? Olhando o que está acontencendo, oras!

Nada de regrinhas. Se você fica com esse monte de coisas que vão acontecer, durante a manobra, na cabeça, de que você vai ter que calçar um pouquinho o pedal aqui, empurrar um pouquinho o manche ali, você vai se desconcentrar das coisas realmente importantes. Vou focar, portanto, apenas nas coisas óbvias, como na hora que você está lá em cima da manobra, na hora da pivotada.

Agora vamos começar a parte da imaginação: você está em um Super Decathlon, a uma velocidade acima de 140 milhas, e obviamente descendo um pouco, porque é acima da velocidade de cruzeiro. Você vai trazer o avião para o plano, cabrando. Agora você está reto e nivelado. Você vai dar uma cabrada firme, de uns 4,5 gs e trazer o avião para a vertical.

No meio dessa cabrada você vai olhar para a asa esquerda do avião até achar o ponto vertical certinho, e parar de cabrar. E portanto, vai manter o avião na vertical. Nessa hora você pode precisar de um pouquinho de pedal para segurar a vertical, ou pode precisar picar um pouquinho, porque não tenho a mínima ideia de como você deixou calibrado o seu compensador. Então, mano, presta atenção e vai corrigindo devagar.

Só nessa cabrada, de onde você trouxe o avião do voo reto nivelado para a vertical, agiram algumas forças sobre a aeronave. Para você ter a ideia da confusão, por causa do fator P, você tem que dar pedal da direita, e por causa da precessão da hélice, menos fator P agiu sobre o avião, porque uma força é contrária a outra. Aí tudo depende da velocidade que você fez a cabrada e a velocidade que você entrou. Então, mano, nada de ficar decorando porque não vai dar certo. Olha e corrige de acordo, porque é pouco mesmo. E mais: algum vento, turbulência, etc, que sempre tem, vai tirar você do trilho mesmo, e portanto, decorar é inútil.

Voltamos ao hammer: você está na vertical. Sua cabeça está virada para a asa esquerda, certo? Claro, você está olhando para asa para manter o teco-teco bem na vertical. Nesta você está corrigindo o angulo, se alguma asa está um pouco mais baixa que a outra, essas coisas. A primeira dica é que você faça essas correções disfarçando, como se não tivesse errado. Isso mesmo, bem de leve. Finge que não errou! Isso mesmo. É por isso que não precisa decorar! A correção tem que ser lenta.

Você está na vertical, você já fixou o avião na posição correta. Sua velocidade está baixando. Você vai olhar agora para o velocímetro. No Super Deca, você vai chutar todo o pedal esquerdo em exatas quarenta duas milhas e meia. Isso mesmo. E vai manter pressionado. Alguns efeitos vão ocorrer no seu avião. E eu vou explicar: sua asa direita vai vir pra cima, como se o avião estivesse um pouquinho querendo ir para o dorso. Isso sempre vai ocorrer, e você vai dar aileron para direita para corrigir. Vai ser aileron pra cacete, quase tudo. Você tem que manter o avião na faca. Essa é uma manobra que você não precisa de gente no chão para te falar se foi bem feita. E para saber se o avião está na faca certinho é só olhar pra frente, certo?

Pois bem. Se você decorar essa história que tem que dar aileron para fora, seu hammer vai ficar um horror. Cansei de ver gente, na hora que chuta o pedal, já enfia o aileron para o outro lado. Sobe tudo torcido, esquisito. Então você vai dando aileron na hora que precisa. É simples.

Antes de continuar, eu sei que você está achando divertida a história das quarenta e duas milhas e meia para chutar o pedal. E sei que se você conversar com outros pilotos de acrobacia, eles vão falar que você deve “sentir” o avião, ou em “pilotar o avião com a bunda”. Isso não é para você, meu caro. Isso pode ser pra nego que tem milhares de litros de gasolina para queimar tentando entender isso. Esquece. O lance é o velocímetro.

Voltando ao avião: você está na faca, sua velocidade é quase nada, seu nariz está caindo, seu pedal esquerdo está totalmente pressionado. E exatamente por estar com velocidade baixa que você precisou usar todo o aileron. Ele está bem molinho, por sinal. E agora tem um outro comando para você dar. Mas, novamente, não fique programado. O nariz vai puxar um pouco e você vai ter que picar um pouquinho. Então na hora que precisar, você pica um pouquinho. Sacou? Vai olhando, cara! É pouco mesmo porque quando você está picando, o vento da hélice bate lá no profundor, e ele tem bastante comando. Novamente. Nada da programação “empurrar manche” na cabeça. Vai olhando e dando a picada. Igual receita de cozinha que diz “sal a gosto”.

Agora vamos para o esqueminha para você saber se fez certo: se você pivotou lá em cima e precisou dar pouco aileron para fora do hammer, e não tudo ou quase tudo, você fez a pivotada rápida demais. Se você deu todo o aileron, não adiantou, e o torque deixou ele passar uns graus, levando o avião um pouco para o dorso, você chutou lento demais. Então para de rir das quarenta duas milhas e meia. Isso é a única coisa que você tem que decorar.

Quando for perfeitinho seu hammer, quando você voltar da pivotada, você vai ter até que dar um pouco de pedal para a direita, igual carro de rally fazendo drift no barro. É divertido! E essa é sua meta.

Nunca tomei nota ruim de hammerhead fazendo desse jeito. Faça assim algumas vezes, você vai sacar. Concentre-se e só treine de verdade outras manobras, aquelas que precisam de timing do avião. Essa já era.

Em uma outra oportunidade escreverei sobre como salvar um hammer mal feito onde você chutou o pedal com menos velocidade e você sabe que o torque vai te sacanear logo mais. Você acha que não tem solução mas e tem. Mas essa dica só dá para dar depois que você fizer uma porrada desses hammerheads bem feito.

Decore as quarenta e duas milhas e meia. Vai por mim.

Filipe Rafaeli foi campeão brasileiro de acrobacias aéreas, na categoria esporte, a mais competitiva do Brasil, diversas vezes.



*Texto originalmente publicado na Revista da CBA - Comitê Brasileiro de Acrobacia e Competições Aéreas, em 2018.

* O Aeroclube de Itápolis fornece o curso de acrobacias no Super Decathlon, entre em contato para mais informações.

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